Acabamos por não viver uma vida, mas viver numa vida. Vivemos, depois nota-se que vivemos. Enquanto vivemos, simplesmente vivemos; e depois, muito simplesmente se viveu.
E ele vive. Vive, por ser evidente que vive. Mas vive com a constante ausência do viver. Precisamente a ausência que lhe torna o viver impossível. Não obstante, é impossível negar o seu viver, afinal, sempre é evidente que vive. O viver que é o seu maior desejo. E assim o necessário se torna necessidade. É este o paradoxo que entoa ao pensar.
“A vida não é isto, foi-me ensinado que a vida não é isto. Eu vejo, vejo tanto, vai muito além, para além. Mas para onde ir? Sei para onde vou, todos sabemos para onde vamos e, curiosamente, ninguém sabe o seu destino. Como viver sem saber o que se vai viver, como é que não é isto já uma básica insuportável leveza do ser inevitável. Que heroica habilidade possuís para não vos deixares corromper por esta verdade incorruptível? Ou deixais? Ou a dor que todos carregamos já é o resultado disto que digo. É óbvio. E se é tão óbvio, porque me confunde tanto?
Vou falar”
-O que me escondes?
-Que dizes? – responde o mundo em generalidade, ainda embalado pela sua rotina. Os seus amigos ocupavam o lugar que ocupariam enquanto decorresse o dérbi, o lugar de onde beberiam, gritariam e, provavelmente, festejariam ocorrências desportivas.
-Mundo, o que me escondes?
-Ó Joel: já ‘tás triste antes do jogo? Aproveita enquanto não começar a malha. – Miguel, 29 anos, continuaria a vir à terra enquanto a terra lhe desse companheiros, cerveja, e quilómetros de distância da vida que começara a viver por viver.
Volta a levantar-se, não sabe o que fazer. Sabe que o mundo ali continuará impassível, sem respostas e sem se desviar o mínimo do que pode ser, durante um jogo entre Benfica e Sporting.
-Olha que o jogo vai começar.
Acena ao Miguel, é o que se faz para não se ignorar as pessoas. E sai.
“Posso entrar. Posso, e ver o jogo. O jogo vive-se, o jogo faz parte de tantas vidas, e recordá-lo-ei. Trar-me-á emoções, tirar-me-á tempo, e acho esse tempo barato. É um dérbi, 90 minutos a correr, 90 minutos que passam a correr. O que me preocupa é o depois. Depois, nada. Continuo o mesmo, o mundo continua na mesma.”
-Começa mal?
-O quê? Ah, não, não. Vim fumar, ainda consigo ver pela janela. Também não é como se fosse sair dali grande coisa. – Nando, 43 anos, entretido com as tretas da associação e com a doença da mulher – Cá fora?
-Não estou muito interessado.
Fernando tosse para o braço que segura o cigarro acesso. Tem gestos de conformado, de homem que se resignou à vida que vive por viver. “Sempre teve problemas, porquê que estes o haviam de perturbar.”
Miguel chama-os de dentro. Luís vem à porta convidá-los a assistir ao remate ao poste de Pizzi, que falha “redondamente” uma oportunidade clara.
Entram sem convicção no café de onde há pouco saíram, vêm a repetição do lance e debatem-no com Luís.
-Por amor de Deus, nem sequer estava enquadrado.
-Enquadradíssimo, minha gente, enquadradíssimo. Ó Nando: tu, que tens a pontaria de um camelo, acertavas aquilo. – Luís trouxera a namorada que deixava a um canto arrumada com o seu telemóvel. Procurava de tudo em tudo, pouca coisa tinha. – Como é que conseguem estar lá fora? Está briol.
-Está um briol.
-Dá das duas formas. – retorquiu.
“Tudo é válido. Talvez seja e debatemo-nos anedoticamente por verdades ilusórias. Fomos feitos para isso, para regularizar tudo o que nos aparece à frente e para nos desiludir com a sua recusa em se limitar. Então… sim, viver por viver. E porque não?”
-Não posso fumar aqui.
-Oh, deixa isso, a Carla deixa. Não é Carla? – Luís, o abusador, conhecera Carla nesse dia.
-Não vem mais gente? (murmúrio) Então deixa-te lá estar Nando.
“Isso, deixai-me andar, deixai-me viver o que a vida há de me trazer.”
-GOOOOLOOOOOO! É este ano Sporting, ah caraças.
-Também não te entusiasmes Miguel, que ele ainda há de tirar este merdas do Pizzi.
-Pode tirar quem ele quiser, caralho. Este já não nos tiram.
-Não, não… olha o VAR.
-Olha, pronto, o Vieira a fazer das suas.
-Mas é que estava fora de jogo a milhas.
-És um aldrabão, Nandito, um aldrabão.
Fernando não responde, o silêncio é novamente a infinitude que repele a rebelião do existir.
“E lá volto eu a mim, ao ser que não é mais que isso, e quando o é, esquece-se de ser. Não. Tenho de sair deste ciclo. Eu tenho mesmo de sair desta bolha. Bolha! É isso, fugir da bolha”
-Joel: aonde vais?
-Tentar.