“Todos nós temos a necessidade de ser olhados. Podemos ser classificados em quatro categorias, segundo o tipo de olhar sob o qual queremos viver.” Milan Kundera
Um quadrado T1 lisboeta de recortes clássicos com que a normalmente parcial normalidade se podia identificar. Um domicílio estável de agitação citadina e sossegado pela inquietação que esta provoca. Provocador das tais manhãs mecânicas e dos conhecidos serões serenos, provocante pela sua ciclicidade.
Nele um faroleiro escreve as abundantes palavras que em breve o conduzirão às bocas do mundo, num mundo de bocas retorcidas ou apoios torcidos. Todo o betão, cimento e alumínio conspiram para ofuscar a sua luminosidade, diminuí-lo no pensamento e remetê-lo ao esquecimento que tanto o apavora, não fosse a miraculosa virtualidade que a todos nos liga, para além de nos separar.
Como os barcos tomariam conhecimento da existência de costa, se não houvesse farol; se não houvesse farol, como a costa tomaria conhecimento da existência de barcos? O dia em que o seu corpo deixou as ruas, foi o dia em que as ruas deixaram no seu corpo um vazio, vazio esse que esvaziava cada recente publicação, vazio esse que fazia cada vez mais com que ele publicasse, o que, inevitavelmente, fazia público o seu vazio.
Já não o atraía mostrar-se atraente, e a atração da rua foi a mais forte. Por mais forte que era fisicamente, o físico da rua teve mais sorte.
Nele um fofoqueiro troca mensagens, agora de julgamento do cumprimento dos comprimentos e de medição do comprimento dos cumprimentos. Todo esse policiamento agora é exaustivo, todo o betão, cimento e alumínio conspiram para o seu não cumprimento, apesar de tornarem a exaustão incompreensível.
Como um problema oculto pode ser denunciado, como pode um problema ser denunciado se não for oculto? O dia em que empurrou as pessoas para suas casas, foi o dia em que se encerrou na sua, impedido de verificar a isolação sob o risco de a corromper.
Impelido pelo respeito à razão a desrespeitá-la, perdeu-a e perdeu-se no que viria a ser a sua perdição.
Nele um femeeiro troca mensagens de paixão, saudade e coragem para com a sua mais que tudo e, mais que tudo, sente a sua falta. Todo o betão, cimento e alumínio escondem o seu olhar, sorriso e chamamento, e distancia-os todo esse encobrimento. Distância vagamente percorrida pela veloz tecnologia que apenas os faz lembrar da sua existência.
Como o vento está para o fogo, está a distância para o amor, mas de que serve a maior das chamas se não nos aquecer à noite? O dia em que se uniram, foi o dia em que se separaram e dizem-lhes que os dias que os separam são os mesmos que os unem, uma ironia que ironicamente não lhes traz qualquer satisfação.
Levados pela distância a juntar-se, à distância se juntaram eternamente.
Nele um forasteiro escreve as escassas palavras que em breve o conduzirão ao desespero artístico. Todo o betão, cimento e alumínio conspiram para lhe apagar o Sol da memória, tirar o verde do pensamento e deslocar as pessoas do coração para um plano bidimensional tosco e francamente irritante.
Como um homem pode escrever sem viver, como um homem pode viver sem escrever? O dia em que passou aquela porta, foi o dia em que não voltou a passá-la senão para pequenas voltas que não lhe traziam de volta a criação, o que tanto o revoltava.
Não encontrou beleza naquilo a que chamara casa. Aquilo a que chamara casa não o encontrou mais, pois, de encontrão em encontrão, pereceu de um encontro fatal.
“A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo.” Fernando Pessoa
Texto concorrente no concurso "Uma história em tempos de COVID-19"